São poucos os documentaristas que, em todo o mundo, podem gabar-se de
haver arrastado aos cinemas milhões de espectadores para ver
seus filmes. Silvio Tendler fornece um desses raros exemplos.
Os Anos JK, em 1980, faturou 800 mil espectadores; O Mundo Mágico dos Trapalhões, em 1981, 1,8 milhão; Jango, em 1984, 1 milhão, e O Veneno Está na Mesa 2,
de 2014, já exibido online, foi assistido por mais de 5 milhões de
pessoas. Quando o Brasil emergia dos anos de chumbo da ditadura militar,
que tanta gente hoje quer negar que houve, e vivia um processo
de abertura democrática, Jango virou o filme das diretas já.
Eu me lembro de como, nos cinemas, em Porto Alegre, a gente aplaudia
durante as sessões, cantava e até chorava com Milton Nascimento.
“Coração de Estudante” virou um hino, como o Hino Nacional que Fafá de
Belém cantava nos comícios que mobilizavam multidões.
Silvio Tendler! O que seria seu primeiro filme, sobre a Revolta da
Chibata, depois que ele conheceu o lendário Almirante Negro, João
Cândido, simplesmente desapareceu do mapa, porque o responsável pela
guarda dos originais queimou o filme para evitar complicações com os
milicos. Tendler viajou para o Chile, na euforia do governo da Unidade
Popular de Salvador Allende, foi para a França, onde se ligou a Chris
Marker e Jean Rouch, papas do cinéma vérité. Formou-se em
História pela Universidade de Paris e fez seu mestrado na École de
Hautes Études, com uma tese sobre Joris Ivens. Tendler já sinalizava
que o cinema que queria fazer seria político.
Os Anos JK recriam a trajetória política de
Juscelino Kubistchek, começando com a promulgação da Constituição de
1946. Surge esse jovem prefeito de Belo Horizonte, que contrata dois
comunistas para erguer a igreja da Pampulha, que será sua plataforma
para o governo de Minas. Arauto de uma ideologia desenvolvimentista que
promete fazer o País avançar cinquenta anos em cinco, JK elege-se
presidente do Brasil com a promessa de transferir a capital para o
Planalto Central, criando Brasília. A indústria automobilística
desenvolve-se, o som (internacional) do Brasil vira a Bossa Nova e
Tendler põe na tela o que era o estilo, a maneira de ser e governar de
JK. O novo populismo, pós-Getúlio. Mais ou menos na mesma época, Ana
Carolina documentou, ou melhor, interpretou psicanaliticamente o mito de
Getúlio (Getúlio Vargas, 1974) como o Pai, em Trabalhadores do Brasil:
“Todo o povo brasileiro chorou/Morreu o presidente…”. JK, eterno
otimista, tinha o espírito conciliador. Minimizava tensões sociais e
conflitos partidários, fazia concessões.
Voltar a Juscelino, naquele momento, enfatizava o espírito de
redemocratização. Com João Goulart, o processo democrático fora
interrompido. Como, quando e por que se depõe um presidente? Tendler
pega carona no documentarista cubano Santiago Alvarez, em seu filme
sobre a execução do general Pratt, no Chile: Como, Por Que y Para Qué se Asesina a Un General?
Como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, Jango assegurou direitos
aos trabalhadores. Como presidente, defendendo a bandeira do
desenvolvimento nacionalista, encaminhou as reformas de base que o
Brasil necessitava, inclusive a agrária. Foi etiquetado como comunista –
o fenômeno da Revolução Cubana era recente e alarmava as elites
brasileiras –, e deposto. Herói injustiçado ou agente
comunista inexperiente? O filme posiciona-se contra o golpe, adota a
bandeira da legalidade, deixa implícito que é preciso retomar o processo
democrático. Diretas já!
Quando Silvio Tendler fez esses filmes, os tempos eram outros. Em
1968, Stanley Kubrick já mostrara o super computador Hal-9000 assumindo o
controle da nave de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Dois anos depois, Joseph Sargent já propusera Colossus 1980,
em que, em plena Guerra Fria, os militares dos EUA entregam o controle
do sistema de defesa do país a outro computador, que enlouquece.
Não havia redes sociais, havia a desconfiança da máquina. Seria
impensável imaginar presidentes como Donald Trump ou Jair Bolsonaro,
governando pelo Twitter. O mundo mudou muito e, nesse processo, o cinema
de pesquisa e investigação histórica de Tendler virou referência,
inclusive universitária. Seus filmes viraram temas de estudo em
universidades, e o próprio Tendler tornou-se professor de cinema. Hoje,
quem pesquisa na internet descobre que lhe colaram a etiqueta de
cineasta dos vencidos, ou dos “Sonhos Interrompidos”, por seus filmes sobre JK, Jango, Carlos Marighella ou Glauber Rocha.
Muito antes que Wagner Moura fizesse sua ficção sobre Marighella,
Tendler já traçara o retrato falado do guerrilheiro, em 2001. Dois anos
depois veio Glauber – O Filme, Labirinto do Brasil,
e o título já deixa claro que, por meio do artista que estudou (e
sonhou transformar) o País, o que ele está querendo é entender, ou pelo
menos fazer uma proposta de discussão da nossa brasilidade. Seu
recorte é sempre de esquerda, na contracorrente desse direitismo tacanho
que se instalou no Brasil e transformou a caça aos comunistas
inexistentes e o desmantelamento do que chama de marxismo cultural
em pedras de toque do (des)governo vigente. Os títulos já revelam a
intenção: Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá; Memória do Movimento Estudantil; Tancredo – A Travessia; Militares da Democracia – Os Militares Que Disseram Não; Os Advogados contra a Ditadura – Por Uma Questão de Justiça; Sonhos Interrompidos, etc.
No total, são mais de 70 filmes de longa, média e curta-metragem, em
formato documental, além de 12 séries. Uma obra extensa e respeitável
que tem valido a Silvio Tendler prêmios e homenagens pelo Brasil e pelo
mundo afora. Ele recebe agora a Homenagem da Ecofalante, e,
por se tratar de um evento ligado a questões ambientais, um outro
aspecto da obra de Tendler ganha destaque. O que ele percebeu é que não
basta discutir e tentar entender os grandes movimentos políticos, os
golpes. Política e economia andam indissociáveis, e nunca pelo
favorecimento das massas. O mundo é dominado pela desigualdade social e,
em países como o Brasil, com escandalosa impunidade, o agronegócio tem
prosperado às custas do desmatamento, do avanço sobre territórios
indígenas e quilombolas e de quantidades colossais de venenos
químicos, usados como fertilizantes agrícolas, a um tal ponto que uma
parlamentar que tem sido porta-voz do setor tornou-se conhecida no
Congresso brasileiro como ‘musa do veneno’. E surgiram Agricultura Tamanho Família, O Veneno Está na Mesa 1 e 2, Dedo na Ferida, que venceu a Competição Latino Americana da Mostra Ecofalante de 2017, e O Fio da Meada, último documentário do diretor, que estreia na 8ª edição do festival.
Completam-se em 2019 dez anos de Utopia e Barbárie.
Não importa se Tendler fez filmes melhores, ou de maior sucesso de
público e crítica. Esse é especial, de alguma forma, para o autor do
texto: é a obra síntese do cineasta, o seu legado. Produto de uma
pesquisa extensa que consumiu 20 anos, o filme vai ao pós-guerra (1945)
para mapear e estudar as grandes mudanças que, no século 20, terminaram
por moldar o mundo no século XXI. Como narrador, e comentando
os acontecimentos, Tendler revisita as lutas pela independência das
colônias africanas (e não apenas) e os golpes militares na América
Latina. O Chile, tão importante para ele, rende alguns dos
melhores momentos no filme. Chile esse que hoje virou avatar dos
planejadores econômicos que querem voltar à Escola de Chicago para
resolver os problemas do Brasil. O mesmo Chile que tem hoje mais
gente catando lixo nas ruas de Santiago do que jamais teve em sua história – eu sei, eu constatei isso em janeiro de
2019. Mas o que isso importa para os que só querem governar e legislar
em nome dos poderosos? Por mais imoral que seja, a desigualdade é um
alimento para a autofagia dos que professam a lei do mercado.
O Chile também é um emblema para Tendler. A utopia de Allende, a
barbárie do golpe do General Augusto Pinochet. A Guerra do Vietnã.
Quando lançou seu filme, Tendler advertia que se tratava de um filme não
acabado, ou melhor, inacabável. Intuía ele que a barbárie, que talvez
nunca tivesse ido, voltaria com mais força – no Brasil, nos EUA, no
mundo? Tendler percorre 15 países, entrevista intelectuais, filósofos,
artistas, jornalistas, historiadores, economistas. A grande e a pequena
história são revistas de diferentes ângulos e perspectivas. O próprio
Tendler participa, como personagem. Letícia Spiller, Chico Diaz e Amir
Haddad expressam seu pensamento. São impactantes – uma sobrevivente de
Hiroshima narra cenas que, para ela, representam o inferno; Eduardo
Galeano, o grande escritor de As Veias Abertas da América Latina,
diz que sonhar é o papai e mamãe de todos os direitos, pois todos
os demais derivam dele; e Pinochet, o monstro. Ao ser indagado sobre
fossas comuns para seus opositores, retruca com cinismo: “que baita
economia, hein?”.
O desprezo. Pior que isso, o ódio pelo outro. Narciso acha feio o que não é bonito – ele. Tendler, em Utopia e Barbárie, evoca
movimentos populares, o povo na rua lutando por seus direitos. Não a
massa insuflada pelo ódio que, a partir das redes sociais, sequestrou o
poder no Brasil, nos últimos anos. Seu cinema é um testemunho de luta,
de resistência. Glauber também bradava, em Deus e o Diabo na Terra do Sol:
“Mais fortes são os poderes do povo!” Tendler nunca deixou de
acreditar, de sonhar. Contra o agronegócio, defende a agricultura
familiar (Agricultura Tamanho Família). “O Veneno Está na Mesa”, mas,
na cadeia de produção, o agrotóxico atinge desde o trabalhador que
aplica o produto até o consumidor que come o alimento. Tudo se encaixa
com coerência na obra de Silvio Tendler, que é, toda ela, uma crítica às
forças do reacionarismo, econômico e político. Resistir é preciso.
A doença que pregou o diretor numa cadeira de rodas não paralisou sua
capacidade de pensar, refletir, lutar. Tornou-o mais resiliente. A Homenagem da Ecofalante é, mais que justa, necessária.