Este ano, o Panorama Histórico da Mostra Ecofalante propõe uma reflexão sobre o mundo e a sociedade que se seguiram à grande efervescência cultural dos anos 1960, às utopias, aos sonhos de revolução, às promessas de uma vida mais fraternal e libertária. Maio de 1968 foi emblemático porque concentrou os anseios latentes de toda uma década e de uma geração de jovens que almejou aspirar a mudanças sociais. Pois é daí que este programa parte para se questionar: e o que veio depois disso? O que o cinema tem a nos dizer sobre esse momento pós-utópico?
Maio de 1968 foi também um momento de inflexão. Cai por terra o mito da modernidade redentora e da civilização do bem-estar. Questiona-se, sobretudo, as incongruências e o vazio existencial da vida numa civilização fundada sobre os valores do capitalismo. Três filmes da seleção chamam a atenção para esses aspectos: Zabriskie Point, A Sociedade do Espetáculo e Carne. Abrigo Nuclear também reflete essa desilusão ao retratar uma sociedade distópica pós-catástrofe nuclear, num momento em que parte relevante do ativismo ambiental tomava a forma da luta anti-nuclear.
Mas não foi apenas a juventude francesa que se levantou. Havia um processo histórico mais amplo em marcha e as jovens gerações de todo o mundo revelaram a tensão que jazia latente sob a superfície de aparente normalidade social. Afinal, a década de 1960 – auge da Guerra Fria – foi marcada pela influência da revolução cubana, pela luta pelos direitos civis, pela intervenção americana no Vietnã e pelos levantes revolucionários de libertação nacional, como as guerras coloniais na África. Estes últimos dois fatos, em particular, acabaram se mostrando cartadas tardias e desesperadas de impérios que ainda procuravam manter sua supremacia.. Mas o contragolpe da história viria e o cinema estava lá para documentá-lo em filmes como O Leão de Sete Cabeças, 25, Mueda, Memória e Massacre e Corações e Mentes.
A própria natureza dos ideais libertários e de vida em comunidade dessa geração a impedia de se colocar na posição daqueles cujo próprio papel ela contestava. Afinal, como nos lembra o filósofo Cornelius Castoriadis, quem diz contra-poder, diz poder, e era contra o totalitarismo que toda sorte de poder engendra que essa geração se colocava. Mas o que eram essas utopias e o que sobrou quando tudo se desintegrou? O cinema nos dá algumas respostas, em particular com dois filmes aqui apresentados: O Fundo do Ar É Vermelho e Milestones.
Tudo mudou e nada mudou. O capitalismo continuou sua marcha em direção ao “progresso”, mito maior da sociedade ocidental. Porém, as ideias que serviram de base a 1968 e aos movimentos de contracultura não desapareceram, pelo contrário, suas partículas, desintegradas pela explosão do fim das utopias, se infiltraram no corpo social – e é aí que podemos dizer que o mundo nunca mais foi o mesmo. Causas até então consideradas menores, mesmo dentro dos partidos de esquerda, foram trazidas à pauta e o cinema mais uma vez foi testemunha ocular: Os Tempos de Harvey Milk, Uma Canta, A Outra Não, Angela Davis: Retrato de uma Revolucionária e Ela. Essas obras nos mostram a emergência pujante das lutas dos chamados grupos minoritários.
Os sinais de completa exaustão de uma sociedade que se forjou sob o capitalismo industrial foram fortemente sentidos de maneira coletiva por aquela geração sessentista. Hoje, num momento em que, tal como em 1968, não temos muito claro o que vem pela frente, é pertinente a oportunidade trazida pela Mostra Ecofalante de revisão daquele período pós-utópico, no qual uma geração, ao mesmo tempo em que tentava juntar os cacos daquilo que caia por terra, não se esquivava de abraçar novas lutas.