No momento em que as marcas da destruição dos ecossistemas e da diversidade natural, cultural e social do planeta se fazem sentir de maneira cada vez mais nefasta e desigual, a seção histórica da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema propõe que, a partir de uma seleção de filmes emblemáticos, possamos refletir sobre as profundas raízes desse problema. Estas se encontram na disseminação insidiosa e inexorável de um modelo sócio-econômico predatório, adotado em escala planetária, que beneficia de maneira díspar pessoas, sociedades e espaços geopolíticos (necessariamente divididos entre centro e periferia).
A esse modelo as teóricas Donna Haraway e Anna Tsing deram o nome de “Plantationoceno”. Posteriormente, o conceito foi também trabalhado pelo filósofo martiniquês Malcom Ferdinand – que, aliás, ministrará uma masterclass online na Mostra Ecofalante deste ano – na obra Uma Ecologia Decolonial: Pensar a Partir do mundo Caribenho, recentemente lançada no Brasil. Para seus defensores, o termo “Plantationoceno” – ao contrário de outros, como o bastante difundido “Antropoceno” – permite a inserção da historicidade na discussão das mudanças ambientais globais, reconhecendo os "fundamentos coloniais e escravagistas da globalização" e o fato de que eles tiveram e têm um papel determinante na crise socioecológica em que nos encontramos.
Em suma, o “Plantationoceno” tem como característica a redução da Terra a um "mercado de recursos consumíveis" e a restrição das formas de habitar o planeta à lógica colonial: o mundo é transformado em uma grande plantation, onde há, necessariamente, senhores e explorados, ou melhor, privilegiados e aqueles a quem restam as "condições tóxicas de vida". Segundo Anna Tsing, do modelo colonial da plantation, decorreram não apenas as condições econômicas para a industrialização da Europa e para seu expansionismo imperialista, mas também a concepção moderna de raça, a alienação e o condicionamento do trabalhador moderno e a disciplina dos espaços, com a objetificação da terra, das plantas e dos animais.
O termo permite tornar claras as "injustiças espaciais globais, as relações de poder e de dependência entre lugares situados em diferentes pontos da Terra", estabelecendo uma conexão entre a violência da plantation, "confinada em um longínquo lá, enquanto os produtos finais são consumidos em um tranquilo aqui". Segundo Haraway, "O ‘Plantationoceno' prossegue com crescente ferocidade na produção global de carne industrializada, no agronegócio da monocultura e nas imensas substituições de florestas multiespecíficas, que sustentam tanto os humanos quanto os não humanos (...)".
Ao falarmos de “Plantationoceno”, portanto, deixamos claro que não é mais possível pensar a preservação do planeta sem questionar, nas palavras de Ferdinand, o habitar colonial – que constitui, ainda hoje, a forma hegemônica de se habitar a Terra –, e sem desmontar a ideologia que o sustenta. Ora, os pilares ideológicos desse sistema são a supremacia branca, o eurocentrismo, o racismo e a misoginia.
As diversas e cruéis faces do “Plantationoceno” em nossas sociedades (pós-)coloniais aparecem nesta seleção de filmes. Elegemos um período – os filmes programados foram produzidos entre 1966 e 1984 – que consideramos emblemático não apenas para a história do cinema, que também, nesse momento, conheceu um momento de renovação estética e ideológica, mas também para a história recente das lutas sociais por direitos, justiça e liberdade.
Em particular, vale destacar a militância do cinema latino-americano do período, do qual trazemos nesta Mostra alguns exemplos representativos, que tratam de questões prementes no continente nos anos 1970 e ainda hoje, uma vez que não se supera a condição (pós-)colonial com um mero ajuste ou rearranjo superficial do sistema. Esses filmes falam de questões agrárias nunca resolvidas (Terra dos Índios, Cabra Marcado para Morrer, Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro); genocídio, opressão, racismo, etnocídio contra os povos originários e aqueles que foram escravizados durante séculos pelo sistema colonial que aqui perdurou (Etnocídio, A Coragem do Povo, Quilombo, Terra dos Índios, Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro); denunciam o imperialismo, o neocolonialismo e o fato de que ele se traduziu, nos países do continente, em regimes autoritários, violentos e restritivos que causaram traumas e fraturas sociais que não podem ser superadas por um simples pacto de anistia (Na Selva Há Muito por Fazer, Cabra Marcado para Morrer).
São marcantes os pontos de contato entre filmes realizados em diferentes países como México, Bolívia, Colômbia e Brasil. Em particular, citamos a luta do povo Coconuco pela defesa de suas terras, mostrada no belo ensaio documental de Marta Rodriguez e Jorge Silva, Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro. Filmado durante toda segunda metade dos anos 1970, ele retrata a luta dos indígenas pela defesa de suas terras e mostra o quanto ela está inscrita numa linhagem de resistência que passa por várias gerações de líderes. Assim como exposto no brasileiro Terra dos Índios, a luta pela terra simboliza, em última instância, a luta pela sobrevivência do próprio povo, uma vez que a manutenção de sua cultura e identidade depende disso.
O outro lado da luta também é denunciado pelo filme de Rodriguez e Silva: os recorrentes assassinatos de militantes e líderes do movimento. Ao escutar o depoimento da mulher que teve seu marido assassinado nessas condições, impossível não fazer o paralelo com Elisabeth Teixeira, personagem principal de Cabra Marcado para Morrer, que teve a vida destroçada primeiro pelo assassinato do marido, um líder camponês, e, em seguida, pelo golpe militar de 1964. A importância da mobilização das mulheres também está enfatizada em A Coragem do Povo, de Jorge Sanjinés.
Mas, ao falarmos de marcas e fraturas do “Plantationoceno”, não podemos obviamente deixar de nos referir ao cinema produzido no continente que foi um dos principais protagonistas da luta anticolonial na segunda metade do século XX. No período em questão, muitos países africanos ainda lutavam por sua independência ou celebravam vitórias recentes – e é interessante notar o quanto os filmes são testemunhas desse processo. Nesse sentido, citamos em particular Festival Pan-africano de Argel e Estas São as Armas.
O primeiro, apesar de trazer a assinatura do renomado fotógrafo William Klein, é na verdade um filme coletivo produzido pelo órgão estatal de cinema então recém criado na Argélia, o ONCIC (Organisme National du Commerce et de l’Industrie Cinématographique). Ele retrata o evento cultural e político de celebração da luta anticolonial e da(s) identidade(s) africana(s) que teve lugar em 1969, em Argel, "a Meca dos revolucionários", segundo as palavras do teórico da libertação africana Amílcar Cabral. A capital da Argélia se tornara emblema da luta anticolonial no continente graças à longa, traumática e então recente guerra pela independência travada contra a França, retratada no filme de Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel, também presente nesta programação.
Assim como Festival Pan-africano de Argel, Estas São as Armas também foi produzido pelo órgão estatal de cinema de Moçambique, o então recém criado Instituto Nacional do Cinema. Daí, podemos constatar o quanto a aposta nessa linguagem foi, no geral, importante para os países africanos recém libertos; o cinema tinha uma função de denúncia e propaganda da causa anticolonial, mas também de afirmação de uma identidade. Nesse sentido, o primeiro filme de Murilo Salles, ao mesmo tempo que cumpre a função de denunciar a invasão e o bombardeamento de Moçambique pelas forças imperialistas representadas pelo governo da Rodésia, assume também o tom de um mito inaugural, que narra o próprio nascimento da nação graças ao recurso às "armas" – entre elas, certamente o cinema.
Sintomático, ainda, é o fato de que três dos filmes africanos aqui programados, notadamente os documentários que possuem um discurso anticolonial mais diretamente engajado, Festival Pan-africano de Argel, Estas São as Armas e A Zerda e os Cantos do Esquecimento, se valem de imagens de arquivo para compor sua argumentação. São imagens majoritariamente tomadas do colonizador e que são submetidas a um processo de ressignificação a fim de dar conta de um novo momento histórico. Nesse sentido, o filme da escritora e poeta argelina Assia Djebar (A Zerda e os Cantos do Esquecimento) ganha particular relevo ao contestar a tradição orientalista do olhar eurocêntrico.
Os preconceitos e racismos segregatórios sustentados pela ideia de raça e pela ideologia do supremacismo branco são temáticas que estão particularmente presentes nos filmes do coletivo Newsreel, Community Control e El Pueblo Se Levanta, mas também em outro filme norte-americano, o belíssimo I Heard It through the Grapevine, que tem o escritor James Baldwin como protagonista. Eu, Sua Mãe, da senegalesa Safi Faye, o brasileiro Quilombo e o também senegalês Emitaï tratam da mesma questão, embora em contextos diferentes.
Ao reunir esses filmes sob a ótica crítica do Plantationoceno e de suas premissas, ou seja, a partir de histórias que narram e denunciam um modelo colonial e predatório ainda não superado, que subjuga e objetifica humanos, não humanos e o planeta como um todo, a Mostra Ecofalante aposta na potência do cinema não apenas enquanto importante testemunha desse processo, mas também protagonista na articulação das resistências que se opõem a ele. É graças ao registro atento de cineastas que já estavam, há algumas décadas, pensando e problematizando as injustiças e as feridas sociais abertas por meio de narrativas e imagens que podemos, hoje, compor um quadro mais rico e aprofundado de nossa história recente.