O mundo está mudando rapidamente, tendo como eixos principais de
transformação o aprofundamento das desigualdades, a catástrofe
ambiental, o caos financeiro e a desarticulação dos sistemas
democráticos. No meio disso, as pessoas, as comunidades, as cidades e as
nações buscam formas de resgatar as rédeas do processo, tentando
sobreviver e se organizar num contexto cuja dinâmica lhes escapa. “No
sabemos lo que pasa”, escreveu Ortega y Gasset, “y es exactamente eso lo
que pasa”, caracterização feliz da nossa realidade.
O dinheiro,
até há poucas décadas atrás, era essencialmente constituído por notas e
moedas impressas e cunhadas pelos governos, fazia parte de um privilégio
essencial do poder público e permitia intervenções na organização
social, com profundas deformações, mas também garantindo certo
equilíbrio e, por vezes, sucessos impressionantes. Hoje o dinheiro é
essencialmente emitido por bancos, sob forma de crédito e outros
instrumentos financeiros, levando a uma profunda erosão do poder
racionalizador das administrações públicas. O resultado é um
aprofundamento da desigualdade em geral.
O aprofundamento da
desigualdade nas últimas décadas, no plano internacional, no interior
dos países e nos espaços urbanos, está diretamente ligado à
financeirização. Nesta era em que mais de 90% do dinheiro circula sob
forma de sinais magnéticos, simples registros nos computadores, portanto
dinheiro imaterial, controlado por inúmeros intermediários financeiros,
generalizaram-se práticas especulativas. Sempre existiram, sem dúvida,
mas adquiriram hoje dimensões radicalmente mais amplas. Hoje o 1% dos
mais ricos tem mais riqueza acumulada do que os 99% seguintes. Essa
desigualdade aberrante impactou todas as nossas atividades, e os filmes
que aqui comentamos mostram diversas facetas e diversos setores,
exercício que pode ser mais instrutivo do que teorias gerais sobre o
capitalismo moderno.
Em boa parte, as fortunas dos mais ricos são
investidas em especulação imobiliária. Esse é precisamente o tema do
filme Push: Ordem de Despejo, que mostra os mecanismos especulativos, a
desarticulação ou apropriação dos sistemas públicos, bem como a
crescente dificuldade, para a massa da população, de acesso a um direito
humano básico: o direito à moradia. O solo urbano não foi criado pelas
empresas que com ele especulam. E a sua valorização resulta
dominantemente da própria aglomeração das populações em espaços
restritos: controlar o acesso permite gerar imensas fortunas, sem
precisar contribuir significativamente com investimentos. Empresas
produtivas, características do capitalismo tradicional, produzem bens ou
serviços, gerando lucros, mas também empregos e impostos. Exploram os
trabalhadores pelo salário, mas são produtivas. O controle sobre o solo
urbano gera renta* sem o correspondente aporte produtivo, ganhos
especulativos, que temos caracterizado também como economia de pedágio.
O
exemplo da Blackstone, cujo funcionamento na área da especulação
imobiliária é amplamente detalhado no filme, ajuda muito na compreensão
de como urbanização, desigualdade e financeirização geraram novas
dinâmicas econômicas e sociais nas nossas cidades. Fundada por dois
ex-diretores do Lehman Brothers, um gigante bancário que faliu em 2008, a
Blackstone se especializa em compra e venda de empresas e diversas
atividades especulativas e criou uma diretoria de ‘real estate’,
centrada em atividades imobiliárias. Basicamente, trata-se de adquirir
solo urbano, habitações, terras de periferias, e ganhar com a sua
valorização. Trabalham em nível mundial.
O impressionante é a
escala das atividades. O universo imobiliário sobre o qual a Blackstone e
empresas semelhantes atuam representa um valor da ordem de 163 trilhões
de dólares, o dobro do PIB mundial, que se situa em torno de 80
trilhões. Tipicamente adquirem uma empresa que gere um condomínio
imobiliário, suspendem toda atividade de manutenção, geram ativamente
problemas aos residentes, em particular por meio de aumento radical dos
aluguéis, até que boa parte dos residentes se mude, permitindo a
requalificação do espaço para residentes de alta renda. Vizinhança rica
já por si aumenta o valor do metro quadrado. O controle de políticos
locais é essencial, gerando um clima de corrupção generalizada.
Tal
como Push: Ordem de Despejo mostra o poder dos mecanismos especulativos
modernos sobre um bem comum que é o solo urbano, outro filme, Os
Senhores da Água, acompanha as mesmas deformações por outro prisma, o do
acesso ao bem comum que constitui a água. Já foi um bem de livre
acesso, mas hoje, com 7,8 bilhões de habitantes, uso descontrolado na
agricultura e na indústria e poluição generalizada por uso irresponsável
de produtos químicos, além dos esgotos que correm soltos, a água doce e
limpa está se tornando escassa, e já é chamada de “ouro azul”, em
paralelo com o “ouro negro”, que é o petróleo. A escassez, em termos de
mercado capitalista, é um achado: quanto mais escasso o bem, mais valor
adquire. Isso levou a uma onda de privatizações e aos processos
especulativos correspondentes, amplamente detalhados no documentário.
A
água virou commodity. Os ‘megalitros’, correspondentes a um milhão de
litros na terminologia das bolsas, são, por exemplo, cotados a 700
dólares e vendidos e revendidos nos mercados de futuro: esperto o banco
ou fundo financeiro que previu uma seca e comprou opções sobre um monte
de megalitros, prevendo que a água se tornará mais cara. Não precisa
entender nada de água, nem a que serve, e sim entender de variações na
bolsa. É o que o filme descreve como “financial takeover”, literalmente
tomada de controle dos mercados financeiros sobre o que considerávamos
também, ao igual da moradia, um direito humano. Tal como a escassez de
solo urbano permite o rentismo sobre a valorização da moradia, para
gigantes mundiais como Veolia ou Lyonnaise des Eaux a água se torna um
produto de valor crescente. O objetivo não é necessariamente a
facilidade de acesso dos usuários, e sim a maximização dos dividendos,
e, portanto, da renta dos donos de ações.
O caso não é simples, e
nem o filme simplifica. A gratuidade da água leva a um desperdício
generalizado, e colocar um preço constitui um modo de levar os usuários a
pensarem duas vezes antes de abrir a torneira. Em compensação, as
empresas rurais ou industriais preferem jogar os resíduos nos rios e nos
lagos, sai mais barato do que instalar filtros ou reutilizar. Um
fazendeiro que extrai água dos lençóis freáticos acha que a água é sua,
mas uma região inteira da Califórnia entra em colapso quando gigantes do
agro extraem sem limites e desconsideram o impacto dos agrotóxicos. Na
realidade, aqui, como em outros setores de atividade, não há como
escapar à negociação de pactos e de controles para o uso e descarte
racional de um bem que é necessário para todos. Mas, nas dinâmicas
dominantes, não são os usuários que se articulam, e sim os mercados
financeiros. A remunicipalização da água em Paris, Berlim e inúmeras
outras cidades do mundo faz parte da batalha pelo controle de um bem
que, por ser ao mesmo tempo vital e escasso, é imensamente atraente para
os sistemas financeiros de especulação.
O documentário O Custo
do Transporte Global, de Denis Delestrac, traz outra faceta das
transformações em curso, nesse caso o transporte marítimo. Pouco
pensamos nisso, e é até poético ver um navio se perder no horizonte. Mas
é uma máquina poderosa que está mudando o mundo. Trata-se de cerca de
60 mil navios, que conectam cerca de 4500 portos, transportando cerca de
500 milhões de contêineres por ano, ao custo ridículo de, por exemplo,
300 dólares por um contêiner de 20 toneladas trazido da China para os
Estados Unidos. Em termos econômicos, isso significa que se tornou
natural um casaco vendido em Nova Iorque ter algodão brasileiro, botões
produzidos no Vietnã a partir de lixo plástico europeu reciclado na
China, com complementos de outros países, sendo que na etiqueta
aparecerá apenas Made in Bangladesh, que é onde se acoplaram os
componentes. O transporte barato mudou a economia.
O transporte
marítimo aparece assim na sua poderosa dimensão de articulador da
globalização econômica, permitindo, por exemplo, que gigantes
corporativos de qualquer parte do mundo inundem mercados e desarticulem
economias mais frágeis. Mas os próprios gigantes do transporte marítimo,
como a Maersk Line, constituem um universo desregulado. Para evitar
pagar impostos ou prestar contas da poluição que geram, ou inclusive do
tráfico de drogas, armas e resíduos tóxicos, os navios, em sua quase
totalidade, navegam com bandeiras da Libéria, do Panamá, das Ilhas
Marshall e semelhantes paraísos fiscais. A frota é responsável por 4%
das emissões mundiais de gases de efeito estufa, e também contaminam os
mares com os cerca de 100 naufrágios por ano, com petróleo e outros
produtos químicos. O filme nos descortina um universo de transformações
não só do próprio transporte marítimo, mas de como muda a lógica da
organização econômica do planeta.
Os Despossuídos, de Mathieu
Roy, mostra, por sua vez, como essa globalização e financeirização
transformam a agricultura familiar. Estamos falando de um terço da
população mundial, que vive essencialmente de produzir alimentos em
pequena escala. Uma calça jeans vendida 80 dólares em Nova Iorque, por
exemplo, rende menos de um dólar para quem produziu o algodão na Índia.
Em volta do tradicional agricultor que cuida da sua terra e dos seus
animais, foram-se tecendo teias de dependência, pois enquanto ele
teoricamente é dono da sua terra e livre de cultivar como quer, a
comercialização é controlada por atravessadores, a semente pela
Monsanto, o pesticida pela Bayer (ambas, aliás, hoje coligadas), outros
insumos pela Syngenta, o mercado mais amplo pela Cargill e assim por
diante. É um universo profundamente transformado, pois os gigantes que
controlam os insumos e a comercialização são, por sua vez, empresas
controladas por acionistas que de agricultura não precisam entender
nada. Entendem sim do rendimento das ações.
De certa forma, se vê
que o conceito de mercado livre não tem nenhum sentido quando os atores
são tão desiguais. Como se comenta no filme, “precisamos de regulação
comercial, pois a liberdade entre agentes desiguais leva à lei da
selva”. Estamos no limite (‘au bout’), comentam os agricultores
entrevistados. As novas gerações estão abandonando a agricultura,
dinâmica mal compensada pelo movimento de agricultura sustentável e de
produtos orgânicos que surgem em diversas partes do mundo. As grandes
corporações da monocultura em áreas gigantescas agradecem. Trazem muita
máquina, muita química, muita esterilização do solo. É um novo
colonialismo, comenta um dos agricultores.
Enquanto Os
Despossuídos trata de exemplos em grande parte do Canadá e da Suíça, o
filme Tomates, Molho e Wagner mostra a agricultura familiar na Grécia,
em tom poético e encantador, pois entre outros os agricultores tentam
descobrir como a música clássica ou os cantos tradicionais gregos
impactam o amadurecimento dos tomates. O tom é poético, mas o cotidiano
dos pequenos ou médios agricultores é mostrado de maneira muito
articulada. São bons produtores, geram boas safras, mas para valorizar o
produto precisam transformá-lo em conservas de diversos tipos, viajar
para Bruxelas e outras cidades para entender ‘os mercados’, colocar
fotos ‘típicas’ de camponeses nas etiquetas dos produtos, buscando
satisfazer o misterioso ‘cliente’ moderno. Não basta ser bom agricultor,
é preciso saber ‘se vender’.
O filme traz imagens muito belas do
cotidiano dos grupos que trabalham no campo, nas cozinhas, no
acondicionamento dos produtos, com as intermináveis conversas, fofocas
comentadas no meio de gargalhadas, que nos lembram que trabalhar não é
apenas ser produtivo, é conviver, é rir uns dos outros, é brincar. A
agricultura tradicional é um modo de vida. A modernidade pode facilitar
essas vidas e torná-las mais produtivas, sem destruir a sua dimensão
humana. A tecnologia pode ser muito útil, mas não quando é apenas uma
arma de extração de renta por corporações distantes.
O Golpe
Corporativo de certa forma aborda o pano de fundo de todas essas
transformações, ao mostrar como a financeirização e o gigantismo
corporativo mundializado, que já deformam os rumos dos vários setores de
atividades econômicas, dão o golpe final ao se apropriarem dos próprios
mecanismos políticos que deveriam regulá-los, assegurar que respeitem
as regras do jogo. Em 1999 as corporações conseguiram que se liquidasse a
regulação dos bancos, base jurídica que prevalecia desde os anos 1930.
Em 2010 foi aprovada a lei que permite, nos Estados Unidos, o
financiamento corporativo das campanhas eleitorais. “Temos os melhores
congressistas que o dinheiro pode comprar”, comenta Hazel Henderson.
Geraram um sistema jurídico paralelo que permite que crimes corporativos
sejam objeto de acordos extra-judiciais: ninguém vai preso, apenas
geram multas sem reconhecimento de culpa.
No documentário chamam
isso de golpe corporativo em câmara lenta, mas durou poucas décadas e
gerou um profundo desequilíbrio no que era o coração dos processos
democráticos de tomada de decisão: a harmonia entre o Estado, as
empresas e a sociedade civil. Entende-se perfeitamente que Trump tenha
aprovado uma gigantesca redução de impostos sobre as corporações, ao
mesmo tempo que tentava travar o acesso a serviços públicos de saúde.
Trump é apenas o sintoma, mas não a doença. A doença é o deslocamento de
poder, que aprofunda as desigualdades e generaliza o sentimento de
insegurança e frustração na massa da população, que termina por votar em
qualquer candidato que canalize o seu ódio e aponte culpados, que podem
ser mexicanos ou muçulmanos ou a China, ou qualquer culpado, desde que
seja externo. Liberar o ódio funciona muito mais, em política, do que
discutir programas econômicos e sociais. O documentário trata dos
Estados Unidos, mas é só olhar como o golpe corporativo está funcionando
em numerosos países. Como escreveu há alguns anos Octávio Ianni, a
política mudou de lugar.
No conjunto, os seis filmes nos trazem
dimensões diferenciadas, mas complementares, de como a luta pela
habitação, o acesso à água, o transporte dos produtos, o acesso às
tecnologias e o universo do pequeno produtor rural se deslocam frente a
dinâmicas que pertencem ao universo poderoso e distante das grandes
corporações financeiras, que pouco entendem dos setores específicos, mas
entendem tudo dos lucros que se pode extrair. O capitalismo está se
deslocando: não são mais os produtores, os capitalistas rurais ou
industriais tradicionais que mandam nos processos econômicos, e sim ‘os
mercados’, as bolsas, os bancos, os traders, o chamado capitalismo
financeiro global. Esse, ninguém controla: não há governo global.
*O conceito de ‘renta’ não aparece nos dicionários da língua portuguesa. Mas é essencial para entender as dinâmicas econômicas modernas: em inglês ‘rent’, ganho sem o aporte produtivo correspondente, é claramente distinto de ‘income’ (renda); em francês é igualmente clara a distinção entre ‘rente’ e ‘revenu’. Personagens de Machado de Assis que “vivem de rendas”, portanto prósperas e ociosas, caracterizam bem o rentismo, mas o conceito de ‘renta’ é essencial para caracterizar esse tipo de ganhos.